O melhor lugar da Plateia
Claro que há uma razão de ser, mesmo que seja só uma, para as pessoas estabelecerem-se temporariamente neste espaço pouco preservado. O mesmo motivo para onde me trouxe a minha intuição: o panorama único, o pôr-do-sol formoso, a paisagem esplêndida que um final de tarde em Istambul pode proporcionar tanto a um turista de passagem como a um istambulense que desconhece qualquer outra cidade para além da sua.
Não interessa o piso enlameado, os inúmeros gatos vadios a brigar por uma espinha ou o menosprezo entre gansos e cães que se cruzam com frequência, aqui mesmo ao lado. No horizonte, por de trás do Bairro do Bazar, do Serralho e de Sultanahmet o Sol desce abrupto e consagra a oportunidade de sentir-se a pulsação arcaica do emaranho de habitações, edifícios comerciais, hotéis, mesquitas e palácios, que ganham uma silhueta amena e um contorno amarelo-torrado que deixa qualquer espírito submisso e nostálgico. Ou iludido, no meu caso, pois morar a cinco minutos desta galeria de arte, desta tela gigante e autêntica é ilusão pura. Para mim, que sem dar conta estou a pouco tempo de regressar à galeria chamada Portugal.
Um senhor que está sentado acena-me, percebe que insisto em arranjar um cantinho. Chega-se um pouco para a direita e oferece-me o espaço que sobra do seu banco, como quem quer companhia em troca. Sento-me. A pouco mais de um metro encontra-se a orla que separa o fim do planalto e o início do Corno de Ouro, a peça que completa o bonito puzzle paisagístico que tenho diante dos olhos, a foz que desagua no famoso Estreito de Bósforo.
O senhor diz qualquer coisa, eu respondo-lhe em inglês, que não compreendo turco, mas ele insiste em colocar-me questões no seu idioma, o único que conhece. Passamos o tempo nisto. Através de alguma linguagem gestual pelo meio percebo que se chama Tŭkce e que trabalha na foz, é capitão de um dos pequenos e seculares barcos estacionados no porto à nossa frente, um trimarã do tempo do meu bisavô que leva românticos a atravessar o Corno de Ouro por dez euros, negociáveis, como quase tudo em Istambul. Mas este comandante tem uma particularidade: pode ser iletrado, não ter quaisquer conhecimentos linguísticos mas é (muito) competente a secar garrafas de vinho Dimitrakupulo Sarabi, as mais acessíveis do mercado. Besh lira é quanto custam, diz-me, como olhos semicerrados, tronco flectido e gestos trémulos e descoordenados. Dois euros e meio para trocar sobriedade por um bilhete no melhor lugar da plateia. Não está nada caro.
A Ponte Gálata, que passa sobre o Corno de Ouro encontra-se perpetuamente agitada por automóveis, motas, autocarros, eléctricos, turistas, vendedores, comerciantes, polícias e indigentes. Apercebo-me do movimento mas não oiço o ruído; os navios que circulam com assiduidade abafam-no com buzinões aprazíveis, com o simples trabalhar do motor ou com a ondulação que provocam na água e que vem crepitar aos meus pés.
Os pescadores também serpenteiam por toda a ponte, são incansáveis, sabem que pesca mais desportiva e eficaz é na foz e desde cedo que a maioria se estabelece por ali, reconfortando-se com o calor das fogueiras acesas e com os petiscos e chás que os vendedores ambulantes vão despachando a preços irrisórios.
Estabelecerem-se cedo significa ainda com o Sol a dar a primeira espreitadela no Afeganistão, a cerca de três mil quilómetros de Istambul. Outros nem chegam a desfazer a cama, a amarrotar os lençóis, a amassar a almofada; passam a madrugada inteira a assistir à magia que só o engodo sabe fazer. E, frequentemente, lá está um ou outro pescador a recolher dois ou três peixes que se saracoteiam com ímpeto no fio de pesca, destinados a juntar-se às dezenas que repousam no interior do garrafão de cinco litros ou nas caixas de esferovite junto aos seus pés.
O amigo Tŭkce ausentou-se, fez-me sinal que vem já, para eu esperar. Não lhe bastou o litro e meio de vinho que fez desaparecer em menos de meia hora ou a quantidade de cigarros que extraiu do maço, uns atrás dos outros, até mandar a embalagem vazia para o chão. Regressará de facto? Ou dá três passos e esquece-se do que ia fazer nos seguintes? Abstraio-me. Fecho os olhos por uns segundos, limito-me a ouvir, cheirar e sentir. Percebo como os invisuais conseguem ver melhor certas coisas – sabem usufruir do que têm no peito, o coração. Abro-os novamente.
As gaivotas sobrevoam a foz e emitem um chilrear hipnotizante, de manhã à noite. O Sol desaparece por traz da civilização deixando uma luminosidade suave e anestesiante.
Quero parar o tempo mas não consigo. Ainda bem. É da maneira que amanhã posso despertar com a mesquita a ecoar a primeira chamada do dia à oração, melódica e arrepiante para qualquer Ocidental como eu; deliciar-me com um kebab döner ou um peixe assado junto ao porto; escutar a musicalidade turca através dos instrumentos saz, ney, ud, kaval, darbuka e davul provinda de actuações em restaurantes ou na própria rua; fumar nargilé e jogar o típico tavla ou gamão no dicionário português; absorver o que a cidade tem de invulgar, de Oriental, de Médio Oriente…
A noite cai, os assentos ficam novamente disponíveis, a cidade torna-se parda. Ganha uma beleza diferente, mais densa, mais sombria e menos concorrida. As luzes nocturnas vão salpicando os poros de Istambul, o frio assenta com hostilidade. Alguns dos pescadores recolhem, outros vêm substituí-los; outros ainda aproveitam para dormitar um pouco – têm uma longa madrugada pela frente. As gaivotas, essas, permanecem no alvoroço de sempre. Ainda bem.
Aproveito para ficar mais um pouco, não sei quando voltarei a ter uma oportunidade como esta. De qualquer forma, Tŭkce pediu-me para aguardar a sua chegada e ainda não há sinais dele. Espero mais um bocado. Na verdade, aproveito esse mesmo pretexto para não me ir embora daqui tão cedo.
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