Um mês num B&B (Parte 3 - O Desfecho)
A grande questão que se impunha era: viver um mês num conflito idiota ou levar a situação com a calma devida até ao final e depois, com toda a tranquilidade, zarpar para outro lugar?
Eu vim à procura de uma boa experiência, não para gerar inimizades estrangeiras. Decidi ver este roubo como um elogio ao meu sapiente paladar. Portanto, é óbvio que o deixei refugiar-se nos meus doces, desde que isso significasse um resto de estadia sem percalços. Era tudo o que queria. Desde o início. Nunca desejei nada que não fosse um lugar seguro, onde pudesse viver tranquilamente. Parece-me ser nada menos que uma necessidade básica.
No entanto, a relação entre o senhorio e a minha comida ainda não tinha acabado. Oh não. O senhor ainda tinha muitos planos para concretizar com aquilo que eu comia. O próximo episódio desta autêntica novela em que estava envolvida de forma completamente aleatória ainda estava a ser gerado. Um acaso do azar.
A panela e a frigideira estavam no fogão. A mesa estava posta. Faltava a cereja no topo do bolo: o sumo. Fui ao frigorifico resgatar o sumo que tinha comprado no dia anterior. Um sumo natural de maçã. A sede levou-me a colocar um pouco no copo. A minha sorte, neste momento, foi o copo ser translúcido. Ao olhar a bebida noto que tinha uma espécie de estrutura esponjosa a boiar. Tinha adquirido um tipo de estrago. Enviei imediatamente o copo de sumo para o caixote do lixo e esvaziei o copo para o lava louça. E depois pensei: em todos os outros sumos que comprei, nada semelhante aconteceu. Mesmo antes desta experiência, nunca tinha visto nada semelhante. A solução que o meu cérebro me sugeriu era assustadora. Ele, o Menino Carlinhos, tinha colocado alguma coisa na bebida. Não quis acreditar nessa hipótese. Preferia aquela que me dizia que o sumo simplesmente se tinha estragado. Mas, não pudendo confirmar nunca a minha hipótese, a ideia era gritante. Desse momento em diante, passei a beber água que comprava engarrafada e trazia sempre comigo. A comida deixada no frigorifico era mínima, passando a fazer compras praticamente todos os dias. Muitas das coisas que podia guardar no quarto, guardava. Um exemplo disso são os já referidos bolos que, depois de roubados, nunca mais viram as luzes da cozinha. Medidas especiais para uma situação especial.
Uma situação caricata, que eu encarei como o prestige de um ato de comédia, apunchline, surgiu pouco depois. Entrámos na época baixa – outubro -, pelo que o número de pessoas a ficar no Bed and Breakfast diminuía consideravelmente. Ora tínhamos apenas mais um quarto ocupado, ora dois. Inevitavelmente, lá chegou o dia em que éramos os únicos a viver no Bed and Breakfast. E, não se enganem, eu até gostei da experiência. Muito honestamente, preferia estar lá sozinha, especialmente pelo facto da casa-de-banho se partilhada. A comédia no meio de tudo isto, é o facto de ter adquirido capacidades de invisibilidade. Prontíssima para integrara o Quarteto Fantástico! Porque digo isto? Fácil. O Menino Carlinhos, sempre que eu era a única a dormir no seu estabelecimento, simplesmente não preparava o pequeno-almoço, nem tampouco pedia à empregada para limpar a casa-de-banho. Ou seja, eu não existia. Eu estava a pagar para não existir. O que fazer para enfrentar esta situação que não ter uma boa sessão de riso sarcástico?
Estava longe de imaginar que isto iria ser uma brincadeira de crianças. Como já disse anteriormente: aqui piora sempre! O passo seguinte no declínio foi a pura e simples perda de privacidade. O senhorio, agindo como se me fizesse um favor ao permitir a minha estadia no seu albergue, começou a adquirir um sentido distorcido de propriedade sobre algo que eu tinha conquistado assim que lhe dei o dinheiro para as mãos. Acreditem ou não, o senhorio invadiu o meu quarto três vezes. Agindo como se a minha presença fosse da menor importância. Tinha um esquema simples para “pedir” autorização para entrar no espaço que, durante um mês, era meu: batia à porta, abri-a um pouco e depois entrava no quarto. Não esperava uma resposta. Limitava-se a invadir o espaço. Fê-lo por três – TRÊS – vezes!
Completamente desterrada com a sequência de eventos que se sucediam, decidi fazer algo que aconselho toda a gente a fazer antes, muito antes de decidirem num local: leiam os comentários no Booking! Há testemunhos absolutamente aterradores. Começa por ser quase cómico quando um cliente comentou que “O espaço tinha um cheiro desagradável” e o Menino Carlinhos respondeu que o espaço só começou a cheirar mal depois de ele chegar. Passou para o grave quando descobrimos que ele variava a taxa que levava para estacionar o carro sem qualquer congruência, levando desde quinze a vinte e cinco euros pelo mesmo serviço. Um carro voltou, inclusivamente, com uma multa! Contudo, o grave passou para o muito grave. Um cliente diz que testemunhou o Menino Carlinhos a bater na namorada e dizia a todos para que fugissem daquele espaço. Deixei de estar ansiosa e passei a estar assustada.
Já na última semana, eu quase livre do meu sufoco, lembro-me de ter aberto a porta do quarto e ir arrumar algumas coisas ao quarto. Estava a levar a cabo essa tarefa quando ouço um som muito fino na porta. Quando vou verificar o que era, a chave tinha desaparecido! O MENINO CARLINHOS TIROU-ME A CHAVE. Muito bem: agora não só não vivia num palheiro, como vivia num palheiro público. Nem era tanto pela possibilidade do Menino Carlinhos poder entrar no quarto. Creio que eles, e espero bem que sim, sempre tiveram uma chave extra. O que me inquietava era ter os meus bens teriam à mercê da bondade de todos os outros hóspedes. “Basta!”, disse para mim mesma assim que ouço a porta a abrir. Decidi ir pedir-lhe a chave, sem hesitação. Não era o Menino Carlinhos, mas sim a sua namorada. Uma jovem que costumava andar por lá, mas que parecia não ter grande influência no rumo que o albergue tomava, a não ser, claro está, os enqueijados bolos caseiros que preparava para o pequeno-almoço. Ela reconheceu ter conhecimento do roubo, alegando que “Ele retirou a chave para dar aos novos hóspedes”. Ou seja, eu só não passei a não existir, como me tornei irrelevante. Mais aterrador que tudo isso: a chave de um quarto dava acesso a todos os outros. A segurança, naquele albergue miserável, sempre foi uma ilusão. Escusado será dizer que, durante a última semana, por mais irónico que seja, dormi no pior quarto do albergue, mas trancado com recurso à chave que pertencia ao melhor. Nem eu, nem a chave, estávamos contentes com o que se estava a suceder.
(http://www.bosettimarella.it/it/scheda.asp?id_cat=859)
Tentei lidar com a situação da melhor maneira. Suportar a frustração e esperar que o tempo fizesse o resto. Mas todo o tempo não chegou. O último capitulo deste terror aconteceu antes da minha última noite. Chegava a casa. Tinha ido jantar uma bela fatia de pizza da La Conchiglia, na Piazza Bra. Voltava a casa com o espirito cheio. O jantar tinha sido agradável. A noite estava bonita. E era a minha última – finalmente – noite naquele barraco.
Percorria, uma última vez, o beco escuro que dava acesso à porta quando aparece um sujeito cuja única vez que tinha visto estava embriagado, apoiado ao Menino Carlinhos. A segui-lo, vinha a sua namorada. Reconhecia-a melhor porque ela passava as noites a lavar roupa no no Bed & Breakfast. Sempre suspeitam que viveriam no mesmo prédio e não me equivoquei. Ele dirige-se para mim. Diz-me algo em italiano. Não compreendo o que é, mas sorrio porque penso tratar-se de uma piada de conveniência. Só depois percebo que ele está zangado. Aproxima-se e repete o que tinha dito. Agora mais explicito. Fiquei algum tempo a processar o que ele queria dizer. E depois entendi. Dizia-me “Mi hai rovinato i vestiti. Dovrai darmi i soldi o comprarmene di nuovi”. Significa “Tu arruinaste-me as roupas. Vais ter que me dar o dinheiro ou ir comigo comprar umas novas”. Alegaram que o produto que uso para lavar a roupa lhes manchou a branca com tons azulados. Parte factual: o meu produto é branco. Lavei imensas vezes roupas coloridas e brancas. Nunca, em nenhuma instância, a roupa se manchou. E como poderia o meu produto estragar as roupas deles? Estariam a usá-lo? Não me surpreenderia… O tal sujeito chegou até ao cumulo de me mostrar uma nódoa num polo branco que tinha vestido. Era nódoa de gordura. Basicamente: ele não sabe comer sem se sujar e eu tinha que pagar a roupas. Respondi-lhe, prontamente, que não iria pagar as roupas deles. Que seria impossível ter sido eu a responsável pelos estragos nas suas roupas. Começámos a discutir. Ele em italiano enraivecido. A namorada dele atrás, em pose de apoio. Eu a tentar verbalizar em Italiano. O cumulo chega quando ele me goza por não saber fazer italiano. Sim, ele que só fala italiano, gozou comigo que sei falar português, inglês e um pouco de italiano. No meio da confusão, chega o salvador da pátria: o Menino Carlinhos. Ele mesmo! Com a calma e disciplina que nunca lhe reconheci, tenta amenizar a confusão. Depois de tudo o que me fez, desconfio que ele queira verdadeiramente encontrar um meio termo. O comportamento dele nesta situação assemelhava-se em tudo quando me deu a garrafa de vinho para me trocar de quarto. Isto era a garrafa de vinho. Faltava a facada que seria a “troca de quarto”. Após alguma discussão, disse-lhes que tinha colocado uma máquina de lavar antes de sair. A roupa era branca – o meu trunfo. Se as roupas estivessem manchadas, teria de fato existido alguma coisa – sugeriram. Sabia que, a estarem manchadas, teriam sido eles para tentar provar o que nunca aconteceu. Cheguei a um acordo: eu iria ver o estado das roupas. Se estivessem manchadas, dizia-lhes. Se estivessem limpas, ficava tudo resolvido. A questão aqui é: eu não confio. Nunca nada ficaria resolvido. Eu sabia que tinha que fazer alguma coisa, apenas não sabia o quê.
(https://it.dreamstime.com/fotografia-stock-pro-e-contro-pro-e-contro-il-concetto-di-discussione-uomo-con-i-vetri-che-cerca-decidente-image65782602)
Subi as escadas com o coração a resmungar contra a lentidão do cérebro em criar soluções. Apressei-me a verificar o estado da minha roupa. Não existiam dúvidas: LIMPA! Nem uma pinta de cor diferente. Estava tão branca como sempre foi. Tive o instinto de lhes dizer que estava tudo bem. Que eles estavam errados. Mas isso só iria trazer mais discussão. E eu não os queria voltar a ver… Era isso: eu não os queria voltar a ver. Esgueirei-me para o quarto. Olhei para um sítio em especifico sem que estivesse a vê-lo. Pensava. E decidi: vou sair daqui. Comecei a fazer as minhas duas malas mais com velocidade que perícia. Não queria duas malas bem arrumadas. Queria liberdade!
(http://www.autossustentavel.com/2017/05/ecologia-da-liberdade.html)
O que se passou a seguir podia fazer parte do guião de um filme. Fui verificar se estava alguém no Bed and Breakfast. Zero. Encostei o ouvido à porta para os tentar ouvir conversar. Zero. Desci as escadas com cuidado para averiguar se eles estariam a fazer algum tipo de espera. Obtive resposta: estavam a jantar no outro Bed and Breakfast. Pareciam animados, rindo. Supus que fizessem planos para o meu dinheiro. Nunca o veriam. Subi para o quarto, peguei nas malas e saí mais silenciosa que o vento. Assim que senti o vento na cara, corri. Corri quanto pude. Acabei por me refugiar atrás de uma carrinha, que estava estacionada a cerca de cinco do Bed and Breakfast. Nunca me apanhariam. Fui ao Smartphone, fechei negócio para dormir num outro Bed and Breakfast e chamei um táxi. Fui recebida por um sítio encantador. Bem equipado. Cuidado. Apenas o ato de compará-los seria insultuoso.
No dia seguinte mudei-me para uma nova casa. Uma casa a sério. A minha casa. No entanto, a história não acabou. Quando pensei que estava livre, foi quando fiquei mais presa. Literalmente. Tinha acabado de fazer umas compras no supermercado PAM, aquele que fica situado perto da Piazza Bra, quando tudo aconteceu. Requisitei uma Verona Bike, coloquei o saco das compras no cesto da bicicleta e parti para casa. Tranquila, por fim. O caminho para a minha nova casa envolve uma séria de ruas bastante movimentadas. Esta informação é importante pelo que vos vou contar a seguir: o amigo das roupas arruinadas estava a passar no passeio com a sua namorada. Viram-me. Nesse instante, começam a gritar para mim. Quando noto, ele está a correr pelo meio dos carros. A perseguir-me. Conseguiu chegar perto de mim, colocou a sua mão no meu cesto e gritou para a sua namorada “Chama o Menino Carlinhos. Chama o Menino Carlinhos”. Eu estava assustada. Eram loucos. Loucos a perseguir-me. Será que poderia voltar a ter paz em Verona? Eu em resposta eu limite-me a perguntar-lhe dezenas de vezes se me podia deixar ir. Os olhares dos outros estavam focados em nós. Ele não parecia importado. Até que eu disse a frase “Se não me deixares ir, legalmente, estás a cometer um sequestro.” A sua mão largou o mesmo cesto. Os pés foram alimentados por adrenalina. Segui para casa veloz como nunca pensei ser.
(https://www.123rf.com/photo_43900442_stock-vector-cartoon-woman-ride-bike-with-running-dogs.html)
Nessa mesma noite fui até ao posto da polizia municipale. O destino perfeito para concluir o mês do terror.
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