Crepes, chocolate e a ausência de culpa

Publicado por flag-pt Cristiana * — há 6 anos

Blogue: Uma portuguesa em Verona.
Etiquetas: flag-it Blogue Erasmus Verona, Verona, Itália

Segundo a religião cristã, sob a qual eu fui rodeada durante toda minha adolescência, a gula é um pecado capital.

Por si só, dá direito a uma viagem aos escombros da morte. Esse deveria ser motivo suficiente para sentir algum tipo de culpa, remorso ou qualquer coisa do género depois de ter comido o meu lanche de Segunda-feira. Muito honestamente: não podia estar menos ralada com a situação. Se pudesse, acrescento, repetia tudo outra vez.

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A fome começou a apertar enquanto descia a Torre dei Lamberti. A visita tinha sido muito emocionante. A vista era boa. As fotos ficariam para o futuro. A excitação era, de facto, elevada. Mas tanta emoção num só dia, combinada com a necessidade que o corpo tem para se aquecer do tempo gelado que trouxe o nevão, levou a fome a surgir. Contudo, não era uma fome qualquer. Soube de imediato que era aquele tipo especifico que só se sacia depois de ter ingerido uma gulodice da qual me recriminaria nos dias seguintes. Tipo de fome matreira, esta...  É um pouco como o Donald Trump. O problema nem é existir, mas sim aparecer praticamente todos os dias, a querer impor as suas vontades acima das dos outros e ficar a rabujar se não levar a sua avante.

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Olhei para os meus dois acompanhantes dessa tarde de Outono (que era mais inverno que muitos dias que tem esse titulo por direito). Pareciam partilhar o mesmo tipo de fome que eu. Mesmo que não fosse tão agressiva, daria, pelo menos, para os convencer a um sítio onde é impossível não pecar um pouco. Um local criado para desfazer a compostura de qualquer dieta que se queira levar avante. Quem teve a ideia de abrir a Venchi, não estaria muito preocupado na linha das pessoas que a frequentariam, mas sim em adoçar as suas bocas. E, se a minha hipótese estiver correta, não podia ter tido mais sucesso.

Convenci os meus acompanhantes apenas por mencionar o nome Venchi. Perto da Piazza delle Erbe, onde está localizada a Torre dei Lamberti, está a melhor Venchi de Verona. A melhor porque é a única que tem lugares sentados e, como se não bastasse irmo-nos regozijar com os requintes dos mestres chocolateiros italianos, ainda queríamos fazê-lo a ver a tempestade de neve a ocorrer no exterior.  Sabemos que estamos perto da Venchi quando um odor doce chega para alagar as bocas gulosas. Cedo irão descobrir a máquina mágica que produz esse cheiro maravilhoso que vos atraiu para aquele local tal e qual um cão num desenho animado.

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O espaço está decorado de forma a não descorar a tua vontade de corromperes a tua alma com o pecado da gula. Chocolate derretido. Chocolate com avelãs. Deus, há chocolate como tu quiseres que ele esteja! O balcão está repleto de gelados cremosos como nunca antes tinha visto na minha vida. Dá vontade de perguntar que magia eles fizeram para que pudessem criar obras daquela categoria… A parte positiva é que podem experimentar os diversos sabores disponíveis de forma totalmente gratuita. Do chocolate ao morango, da avelã à manga, do coco à baunilha. Minha nossa: diz um sabor e eles dão um gelado! No cardápio desta loja que ganha a vida a fazer os outros pecar, estão ainda disponíveis deliciosos morangos para mergulhares em chocolate derretido ou em natas e crepes que podes receber da forma que bem te apetecer. Todo o capricho é possível… a seu preço. Os valores, confesso, são um pouco intimidatórios. Mas a barriga esfomeada não costuma ligar muito às vontades da carteira. Além de que se, como eu, tivesses passado num restaurante em que o preço por pessoa é de 90€, tudo na loja te pareceria fantástico.

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De muito bom grado recebi a notícia que um dos meus acompanhantes, um familiar que me estava a visitar, queria pagar a conta. Agradeci-lhe.

Pedi o que o meu estômago me exigiu que pedisse. Um crepe de chocolate. O meu familiar pediu um creme com chocolate e avelãs e morangos com chocolate derretido e natas. O meu colega pediu o mesmo que eu. A senhora italiana (acho que ela tinha origens do Brasil!) deu-nos os crepes guardados por uma embalagem castanha preparada especificamente para o efeito. Os morangos, por sua vez, vieram num copo de plástico transparente. A Venchi tem várias mesas espalhadas pelos dois pisos, mas nós decidimos ficar logo na primeira que vimos livre.

Ao início, parecia que todos estavam receosos de dar a primeira dentada. Os crepes perfuravam os nossos olfatos com promessas deliciosas para o paladar. Os morangos, embora não pudessem agitar o olfato, faziam o mesmo com a visão. Os sentidos, no seu todo, estavam encantados com a o que lhes estava a acontecer.

Sejamos honestos: há poucas melhores que possam acontecer a um paladar que estar sentado numa Venchi com um crepe de chocolate a fumegar à sua frente.

Dei a primeira trinca sem qualquer tipo de vergonha. Os outros repetiram o gesto (nos seus respectivos crepes, claro…).

O sabor do chocolate quente envolvido na massa fofa do crepe é incrível. É possível sentir o aquecer da boca ao mesmo tempo que se mergulha na textura macia dos crepes. Olhámos uns para os outros e notámos que todos nos sentíamos culpados de crime nenhum. Estávamos felizes. Uma subida perfeita à Torre tinha culminado com um delicioso crepe a preencher a nossa cavidade oral. Que melhor futuro podíamos desejar? As dentadas seguiram-se. Os crepes foram sumindo. Os morangos, que o meu familiar fez questão de dar a provar aos membros da mesa, desaparecem com igual rapidez.  No final, todos tinham aquela cara de satisfação que recusava palavras para se descrever, pois sabe que as letras que uma mente satisfeita é capaz de conceber não conseguem justificar a satisfação que sentem.

As cadeiras tiveram que levar connosco uns bons cinco minutos, pois recusávamo-nos a levantar. Os corpos pareciam pesados de prazer. Estávamos quentes. Olhámos lá para fora, onde nos esperava um mundo de neve. Depressa a raridade da paisagem branca nos fez acordar para a oportunidade que tínhamos em mãos.

Levantámo-nos na certeza que tínhamos tido uma experiência para recordar. E, se a gula voltar a atacar, quiçá para repetir.


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