Carnaval em Veneza: uma experiência única

Como mencionado nos textos sobre a minha visita às ilhas de Murano e Burano, esta “Rota do Veneto” teve início na bela Veneza, a propósito do seu famoso Carnaval.

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“Um retrato inigualável” – Carnaval de Veneza, 2018

Fotografias do Carnaval de Veneza existem aos milhares na Internet; e tantas que vemos e ficamos embasbacados pois parecem saídas de cenários de filme, autênticos postais que nos fazem sonhar em um dia podermos ser nós a registar o momento. Sim, ver ao vivo é uma história completamente diferente, uma sensação ímpar.

Lembro-me perfeitamente de esta viagem não ter sido de todo planeada com antecedência, muito pelo contrário. Tinha aterrado em Milão apenas há alguns dias e em três tempos o rebuliço da vida Erasmus já estava em pleno vigor, com festas e ideias de viagens. Começar em grande, certo?!

Sabendo que a Universidade e, como tal, o laboratório onde ia estagiar davam férias de Carnaval, organizei prontamente o dia em que começaria o trabalho (na semana seguinte), dando azo à possibilidade de deslocar-me até à região do Veneto e aproveitar uma ocasião incrível para qualquer turista.

Já dispondo do CartaFreccia - modalidade de sócio da Trenitalia, que nos dá imensas vantagens e descontos para viajar de comboio em Itália – consegui comprar um bilhete ida e volta Milão – Veneza a um preço reduzido (qualquer coisa como 20€).

Por um preço semelhante, o moderno e acolhedor hostel “Generator”, na Fondamenta Zitelle da Giudecca, serviu lindamente. Para aquilo que é normalmente oferta de alojamento de Itália, ainda mais sendo época festiva, saiu razoavelmente em conta e, apesar de ter reservado uma cama num quarto para 20 e tal pessoas (porque era o mais barato), não foi uma noite assim tão mal passada.

De qualquer modo, a única coisa que fiz ali foi precisamente dormir umas horas, porque no dia seguinte parti cedo para explorar as ilhas. Não só para essa jornada na Laguna Veneta, mas também para movimentar-me em Veneza no dia anterior, servi-me do passe Vaporetto 24h que tinha adquirido pela igual quantia de 20€. Para mais informações sobres os acessos e deslocações na região podem consultar o sítio oficial.

Para tudo aquilo que tive oportunidade de conhecer e vivenciar, não gastei assim tanto dinheiro face àquilo que seria o mínimo expectável, e alegro-me de ter decidido fazer esta viagem, porque foi de facto fantástica – é difícil dizer se tal chance voltaria a suceder - e perfeitamente adequada para lançar do melhor modo o meu Erasmus.

Como já conhecia bastante bem Veneza – no Verão de 2014, eu e uma grande amiga fizemos uma colossal viagem pelo Norte/Centro de Itália, a qual incluiu a mítica cidade dos canais – o foco desta vez era simplesmente experienciar a animação do Carnaval, sem andar propriamente a querer rever cada canto da cidade. Assim, neste artigo não irei falar sobre Veneza em si e o que fazer/ver, mas apenas sobre o Martedì Grasso. Quem se juntou à festa foi precisamente esta amiga (que também estava a fazer Erasmus em Itália, mas em Bolonha), tal que tudo se conjugou nesta viagem de um modo muito relaxado e divertido.

Começo por dizer que, para pleno Inverno, o tempo estava bastante bom; ainda que fizesse algum frio, o dia estava super solarengo, o que permitia passear agradavelmente pelas praças e canais.

Assim que o comboio chegou à estação de Veneza Santa Lucia, entrei no Vaporetto que faz o percurso externo para a Giudecca, donde, depois de dar entrada no hostel, apanhei a linha que colega ao porto San Zaccaria na ilha de San Marco, grande ponto de referência de Veneza por concentrar grande parte das atracções turísticas, e onde decorreriam os principais eventos de Carnaval. Se não tivesse tido de ir à ilha da Giudecca, a outra forma de ali chegar teria sido pelo interior, servindo-nos do Vaporetto que percorre o majestoso Canal Grande.

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Paragem Ferrovia no Canal Grande. Ao longe, a Ponte degli Scalzi (“Ponte dos Descalços”), dedicada, tal como a vizinha igreja barroca  - Chiesa di Santa Maria di Nazareth, aos frades da Ordem dos Carmelitas Descalços radicados em Veneza.

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Paragem San Zaccaria no Canal Grande. Ao longe, à saída da Riva degli Schiavoni para a imponente Piazza San Marco, o Palazzo Ducale e o Campanile di San Marco, monumentos históricos de Veneza.

Desde logo nesta zona se concentram centenas e centenas de pessoas… Os turistas são aos montes, mas face ao que os italianos me tinham dito: que “ir a Veneza no Carnaval era de loucos”, que era impossível movimentar-nos, etc falando como se fosse uma ideia absurda, tal pareceu-me bastante exagerado… Não achei assim tão mais apinhado em relação ao Verão em que lá tinha estado.

Caminhando pela Riva degli Schiavoni, uma das mais estéticas da cidade, encontramos inúmeras bancas que vendem máscaras para o turista comprar e entrar também ele no espírito da enorme festa que é o Carnaval em Veneza. É absolutamente obrigatório!

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Claro que comprei uma mascarilha! Pano de fundo - Ponte della Paglia e Palazzo Ducale

O primeiro registo desta grandiosa festa em Veneza data de há mais de 900 anos, falando-se de divertimentos públicos que precediam a Quaresma. Esta altura permitia que os venezianos pusessem de parte as suas ocupações laborais e se dedicassem totalmente à diversão, a espectáculos e ludíbrios, desfrutando de uma quantidade de atracções de estilo circense que invadiam a cidade, e que atraiam também muita gente de outras partes do mundo, dado que Veneza era uma importante cidade comercial.

Desenvolveu-se, pois, uma tradição anual segundo o lema já ancestral “Uma vez por ano é legítimo ser-se louco” (do latim “Semel in anno licet insanire”), uma referência que usamos casualmente como dito popular “É Carnaval, ninguém leva a mal”.

Foi, de facto, neste espírito que foi concedida pelas classes dirigentes - numa tentativa de manter controladas as tensões sociais que se faziam sentir na época - a possibilidade de, por um breve período, o povo (humilde e sem posses) imitar os ricos e poderosos de modo jocoso, e fazer troça deles publicamente usando uma máscara sobre o rosto.

Com o decorrer dos séculos, Veneza foi-se transvertendo como “a escola europeia do jogo e do prazer, das máscaras e da irresponsabilidade”, sendo o Carnaval a sua maior façanha. No século XIII, atingiu-se o auge da euforia: sem qualquer resistência, os desejos tornavam-se realidade, não existindo pensamento ou acto que não fosse possível de fazer acontecer. Veneza era assim um local sugestivo, património da fantasia e de um mundo boémio e galante, superficial e altamente teatral.

Com a grande difusão da ideia de “mascarar-se” desde o século XIII, Veneza viu nascer rapidamente um comércio muito próprio de máscaras e trajes, existindo escolas e técnicas próprias para o seu fabrico, promovido pelos “mascareri”, artesãos de elevadíssimo calibre.

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Trajes tradicionais do Carnaval veneziano (2018)

Depois de produzir os modelos, o trabalho maior e mais importante era dar-lhes cor e enriquecê-los com desenhos sofisticados, pérolas, plumas, ou qualquer outro adorno chamativo, perfilando um design que nunca era igual de peça para peça. Os trajes venezianos são arte pura!

A outra ideia por detrás das máscaras, era a de que não existia identidade pessoal nem classe económica, sendo a porta aberta para a Grande Ilusão do Carnaval. E, claro está, igualmente para a vida depravada… Durante o Carnaval sucediam-se transgressões de todo o tipo, e as mascarilhas típicas -  como a “Larva” (para os homens) e a “Moretta” (para as mulheres) - eram utilizadas para manter o anonimato e permitir qualquer jogo proibido. Inclusive fugas amorosas de padres e freiras…

A grande figura da época foi Giacomo Casanova, eterno compositor literário e de óperas, muito conhecido pelo seu lado aventureiro, libertino e sedutor, representativo do engodo do Carnaval, e a quem esta festa foi posteriormente dedicada (já na entrada do novo milénio, como recordação do bicenternário da sua morte).

No século seguinte, a cidade, por todo o fascínio que a rodeia, torna-se uma Meca das Artes para escritores, músicos, artistas plásticos, etc trazendo as correntes em voga, como o Romantismo, ao espírito do Carnaval e inspirando a realização de outros estilos de de máscaras e vestimentas.

Mais ainda, este contexto perpetuou-se no tempo até aos dias de hoje, tanto que para muitos Veneza é também tida como uma cidade artística e romântica, destino de muitos apaixonados.

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Trajes tradicionais do Carnaval veneziano (2018)

A essência especial do Carnaval de Veneza transporta-nos para um mundo de extravagância, sendo uma experiência incrível andar em busca dos figurantes mascarados, atentando aos detalhes dos seus preciosos trajes. Cada um vestido a seu modo, são mil e um, coloridos e muito peculiares, materializando horas a fio de desenho e costura.

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Surgiam alguns trajes mais espampanantes…

Actualmente, o Carnaval em Veneza dura cerca de três semanas, contando com inúmeros acontecimentos ao longo de todos estes dias, cuidadosamente planeados e calendarizados. Desde os vários cortejos e desfiles, ao concurso para o traje mais bonito, aos bailes de máscaras, assim como os consagrados “Voos”, a animação é constante, criando um ambiente único no mundo.

O grande palco? A mítica Piazza San Marco, cujo esplendor aumenta ainda mais com as reinterpretações da Veneza setecentista, trazendo para o século XXI o encanto das actividades artesanais e comerciais que tanto deram (e dão) nome à cidade.

Na tarde do Marterdì Grasso - o último dia de Carnaval – tiveram ali lugar a proclamação da “Maria del Carnevale” e o “Svolo del Leon”. São sempre dois dos eventos mais aguardados, encerrando simbolicamente as festividades desse ano e dando assim o mote para o Carnaval seguinte. Com muita pena minha, já não cheguei a Veneza a tempo de assistir…

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Reunidos na Piazza San Marco

O “Svolo del Leon” contempla o ritual de subida até ao topo do Campanile di San Marco de uma enorme tela cenográfica figurando o famoso leão alado, símbolo da cidade de Veneza. A bandeira é primeiramente saudada no grande palco instalado na Piazza San Marco pelas “12 Marias de Veneza”, uma das quais já terá sido eleita “Maria dell’Anno”, isto é, a dama mais bela e acarinhada da edição, e será neste momento oficialmente coroada e premiada pelo Doge. Seguidamente, o Leão sobrevoa a audiência na grande praça, enquanto músicos entoam o hino de San Marco, numa cerimónia carregada de emoção para os venezianos.

Um outro evento muito importante, que acontece no segundo domingo de Carnaval, e que marca a sua abertura oficial (ainda que a festa tenha início no fim-de-semana anterior sob o cenário do Rio di Cannaregio, envolvendo o fabuloso cortejo sob as águas do mesmo, desde o Canal Grande, em barcas adornadas – “Festa Veneziana sull’Acqua”), é o “Volo dell’Angelo”, nos tempos mais recentes protagonizado pela “Maria” do Carnaval anterior, sendo a dama lançada do alto do Campanile, suspensa por cordas, para alcançar a lógia do Palazzo Ducale.

Trata-se da adaptação de uma tradição muita antiga (já desde 1500), inicialmente conhecida como “Svolo del Turco” dado o espectáculo promovido por um acrobata turco que conseguiu alcançar o campanário do Campanile di San Marco desde uma barca ancorada no molhe, equilibrando-se numa corda praticamente sem qualquer ajuda.

Ao longo dos séculos foram introduzidas alterações neste voo acrobático (que se desenrolava na Quinta-Feira de Carnaval - "Giovedì Grasso), sempre para grande deleite do povo e da nobreza que aguardava com entusiasmo na Piazza San Marco. O “Turco” passou depois a usar asas de anjo e, não só subia até ao campanário caminhando pela corda, como também descia, por entre meio de piruetas, até à lógia do Palazzo, donde recebia do Doge (e da sua comitiva e acompanhantes) flores ou uma soma de dinheiro.

Dado o elevado risco destas acrobacias (tendo efectivamente ocorrido pelo menos uma tragédia), passou a realizar-se (até ao nosso século XXI) o “Volo della Colombina”, fazendo descer uma gigante pomba de madeira que espalhava flores e confetes sobre a multidão reunida na praça.

Carnaval em Veneza: uma experiência única

Destaque para o Campanile di San Marco e para a lógia do Palazzo Ducale – imaginem-se os voos…

É de apontar que os grandes eventos do Carnaval veneziano, com o fim da Sereníssima República de Veneza no final do século XV, foram interrompidos durante algum tempo até progressiva recuperação, como aconteceu com a “Festa delle Marie”.

Na Idade Média, esta festa - associada ao dia da Purificação de Maria (2 de Fevereiro) - reportava à benção na igreja de San Pietro di Castello das noivas para esse ano, sendo escolhidas as doze mais bonitas, de entre as mais pobres da cidade. A estas era então oferecida a possibilidade de receber das famílias mais ricas lindos vestidos e joias, e o dote para se casarem. Nos dias seguintes decorriam cerimónias civis e religiosas, terminando com uma procissão no Canal Grande na qual as "Marias" deliciavam os mirones com a sua beleza e mostravam as suas joias, tudo em jeito de grande festa.

A famosíssima “Festa delle Marie” veio a ser reintegrada nas celebrações de Carnaval somente no virar do milénio, como reinvocação do célebre evento histórico, tomando a forma de concurso de beleza em trajes inspirados da época. Acontece, pois, na véspera do “Volo dell’Angelo”, um grande cortejo com as escolhidas 12 Marias de Veneza, desde a igreja até à Piazza San Marco. Qualquer rapariga entre 18 e 28 anos pode participar…

Decorre ainda um outro “voo”, o dito “Volo dell’Aquila”, no úlitmo domingo de Carnaval, contando com a participação de figuras proeminentes do mundo italiano do desporto e do espectáculo, e que foi implementado em 2010 com vista a recuperar a vertente acrobática do “Volo dell’Angelo”.

Para o turista, é obviamente muito difícil viver todos estes momentos festivos em Veneza… No entanto, considero já bastante bom ter podido presenciar de perto a comoção que se gera na cidade. A tarde que passei em Veneza, bebendo um pouco desta experiência do Carnaval, foi deveras inesquecível e recordo com muito carinho esta oportunidade.

Terminados os últimos festejos na Piazza San Marco, e enquanto esperava a chegada da minha amiga e o seu namorado - eles levaram à letra a ideia da “Veneza poética”, aproveitando o facto de no dia seguinte ser o dia de São Valentim - decidi caminhar pelas ruas da cidade, por aqui e ali, relaxadamente, e ir espreitando as lojas de artesanato típico.

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Montras repletas de adornos carnavalescos

Depois de um belo jantar num daqueles clássicos restaurantes italianos, mimosos e com um menu apetitoso – penso ter pedido um risoto de frutos do mar – ainda deu tempo para passear por outros pontos da cidade, a esta hora com muito menos gente, antes de regressar ao hostel e descansar.

Mas… Pairava no ar um certo mistério, como se tivéssemos sido transportados para a Veneza de outros tempos e nos indagássemos para onde iriam então as pessoas… Um baile de máscaras? Escondidas em volúpia num recanto da cidade?

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Já de noite, na Ponte Rialto - considerada a mais bonita de Veneza

Termino assim o meu relato desta fantástica aventura do Carnaval de Veneza, e espero que um dia possam igualmente ter oportunidade de vivenciar esta celebração recheada de história e encanto!


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